No bairro São Vicente – um dos mais antigos de Boa Vista, capital de Roraima – família vive da cultura de fabricar pães manualmente. Tradição há mais de 40 anos, o pão do Araribóia carrega história e mantém freguesia cativa até hoje.
A receita continua viva nas mãos do criador, roraimense Araribóia Castelo de Souza Branco, 77 anos. “Quando falta um trabalhador, eu venho para ajudar a cortar a massa. Já tenho uma balança na mão”, diz o padeiro aposentado referindo-se à medida para os tamanhos dos pães.
Sem titubear, ele vai puxando pedaços de uma tira de massa feita com a farinha de trigo e passando para os ajudantes modelarem pequenos bolos que mais tarde receberão formato de pães. José Pedro da Silva, 59 anos – trinta deles trabalhando na padaria – não tem a mesma agilidade “Eu uso cortador”, avisa o padeiro enquanto cortava outra tira.
O preparo é muito simples, ao mesmo tempo engenhoso. Não pode haver erro na sequência sob pena de alterar o sabor e a consistência do alimento, segredo que mantém fregueses por décadas.
“Há mais de 30 anos frequento a padaria”, diz o aposentado Sebastião da Silva, 66 anos. Morando distante do bairro, ele sempre arruma um jeito de comprar o pão massa grossa. “Não posso vir todo dia, mas quando venho fazer algum serviço por perto, não deixo de comprar”.
Sebastião nem tem ideia de quanto tempo levou para que o lanche das seis da tarde chegasse quentinho a suas mãos. O processo de preparar e assar os pães no forno começa às 17h e só termina no dia seguinte, às 3h30.
A padaria abre às 6h; à tarde, mais uma fornalha, iniciada ainda pela manhã para servir o produto às 14h. Esse ritmo é de segunda a sábado e são vendidos diariamente uma média de 300 pães no balcão – também são distribuídos em pequenas mercearias.
Ritual para o preparo do pão
Quem vê o pão do Araribóia pela primeira vez se intriga para saber por que o item indispensável no café da manhã ou lanche da tarde traz gente de tão longe para comprá-lo.
De casca grossa, massudo, o pão não tem a aparência refinada como o tipo francês, que é leve e com vazio no lugar do recheio. O que o faz uma iguaria no cardápio das massas é seu aspecto caseiro, com cara de que foi feito pela vovó.
O sabor diferenciado começa na hora do preparo. Primeiro, o trigo é colocado dentro de um recipiente revestido em alumínio; depois, adiciona-se água, sal, açúcar, óleo e fermento – sem bromato de potássio ou qualquer outro produto químico. Os ingredientes são socados à mão até formar massa consistente.
O preparo “descansa” por duas horas para, então, a massa ser cortada em medidas. Depois, são feitas pequenas bolas com as mãos e reservadas por mais uma hora. Por fim, modelar os pães em tamanhos variados e levá-los ao forno à lenha – hoje, só no nome. A matéria prima que garante 300 graus na fornalha são restos de madeiras de construção, muitos doados à padaria.
“Eram usados 14 sacos de trigo por semana; caiu para doze”, queixa-se da crise econômica, Ana Rita Menezes, 48 anos. A padaria passou a ser administrada por ela desde que o pai se aposentou.
Como nos demais comércios no Estado de Roraima, o combustível das vendas vem da folha de pagamento do funcionalismo público. “Quando sai o salário do servidor, a demanda aumenta”, explica Ana Rita. Notícia recente do governo sobre parcelamento dos vencimentos dos trabalhadores estaduais refletiu na venda dos pães.
“Para não perdermos os pães, fazemos torradas”, diz apontando para os sacos de torradas expostos sobre a estufa de salgados. A microempresa ainda se recupera de prejuízo de dois meses causado por obra de drenagem feito pela Prefeitura de Boa Vista na avenida Benjamim Constant.
“Tivemos dois dias sem vender praticamente nada”, lamenta. A via tinha sérios problemas de alagamentos durante período chuvoso.
A origem Araribóia
Sem saber o porquê ganhou o nome dado pelo pai, a quem não teve a sorte de conhecer assim como a mãe, que morreu do parto, Araribóia só sabe que sua identidade tem origem indígena.
Talvez nunca saia da capital roraimense para conhecer a estátua do índio guerreiro que orna a estação das Barcas, em Niterói, no Rio de Janeiro, e leva seu nome. As poucas vezes que viajou foram de carona em avião da FAB (Força Aérea Brasileira). “Do Surumu [vila localizada dentro da reserva indígena Raposa Serra do Sol] para Boa Vista”, diz. O cargueiro levava mantimentos para a região.
Da mesma forma, não leu a história do chefe da tribo dos Termininós, grupo indígena Tupi, que ajudou os portugueses na conquista da baía de Guanabara frente aos tamoios e franceses, no século XVI. “Fiz até a terceira série primária. Não gostava de estudar”, confessa. Mas disse que assina o nome, faz contas. “Não gosto de ler, mas eu leio”, completa.
Desejos, como ele mesmo enfatiza: “só sonho besta”. Um deles é fazer check-up para saber como está o coração. No momento, o que chama sua atenção é um ferimento na perna esquerda. “Foi um [peixe] tambaqui que eu comi à noite. Amanheceu cheio de borbulha”, suspeita.
Desde que perdeu a mulher, Rita Bezerra de Menezes, para a diabetes e Alzheimer, em 2010, o padeiro aposentado passa o dia em casa, nos fundos da padaria, onde reside desde a década de 1970.
Quando o sol da tarde ameniza, ele senta-se em cadeira de balanço debaixo de puxadinho que dá acesso ao forno da padaria e perde-se por horas se embalando e arrastando os pés descalços no chão de cimento.
Lembranças do velho padeiro
Simples, Araribóia vive uma vida pacata, como se a cidade fosse a antiga Boa Vista do século passado, quando ainda se podia dormir com as janelas da casa abertas. O único transporte que se aventurou a guiar, perdeu para um carro desenfreado. “Estava indo de bicicleta receber dinheiro da venda dos pães”, recorda.
O salário mínimo que recebe vem do auxílio-doença do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) – direito provisório adquirido após ter sido vítima do acidente de trânsito. “Não consegui me aposentar pelo tempo de serviço”, lamenta.
Viúvo, não quis mais se casar. “Deixei até de andar de bicicleta”, justifica rindo. O transporte era a fuga para os encontros amorosos. “O pessoal dizia: ‘vi o Araribóia passando com uma mulher na garupa da bicicleta”.
Do espírito aventureiro, conta pelo menos quatro filhos sem comprovar paternidade. Com a viúva, teve seis. Das lembranças que guarda, insight dos pais adotivos: tia Joana Galvão e o marido, Antônio José dos Santos, conhecido como Culeite. “Não sei por que o apelido”, adianta.
Sob a tutela da tia, ficou até os 13 anos de idade. “Eu era muito danado, vivia na rua. Ela me entregou para o meu irmão mais velho”, conta. A profissão de padeiro, aprendeu ainda adolescente em padaria no centro da cidade. A agilidade com a massa, o levou para trabalhar na Vila Surumu, município de Pacaraima.
Depois de dominar o ofício, abriu o próprio negócio, onde permanece até hoje. Com ajuda das filhas e netos, o velho padeiro mantém a tradição do pão roraimense, sabor peculiar do extremo norte. Uma vez experimentado, é como a água do rio Branco: quem bebe, sempre volta. “Esse pão já foi até para Brasília”, conta Araribóia orgulhoso.
Sabor da infância
A importância da padaria Araribóia na vida dos jovens boa-vistenses que viveram as décadas de 1960 e 1970 era quase como ter uma bicicleta Monark para passear na Praça do Centro Cívico. Todo mundo queria experimentar o pão caseiro mais cobiçado – e comentado – da pequena Boa Vista.
O sabor daquela época ainda continua quente na memória. “A gente brigava pelo bico do pão”, brinca o padre Revislande Araújo. “O primeiro pão que conhecemos foi o do Araribóia”, recorda. Ele conta detalhes da disputa em casa para comer a melhor parte na hora do lanche. “De família pobre, um pão dava várias fatias. A parte melhor, a gente disputava”.
O servidor público Daniel Martins, 30 anos, conhece a padaria há bem menos tempo que o padre, mas a recordação também vem da infância. “Desde menino ouvia falar. Pensava que era um pão qualquer”. Ele comprou salgados e pão doce. “Minha mulher liga desde as duas [horas da tarde]: ‘não esquece de ir na padaria’”.
Elornan Menezes, 23 anos, foi criado sentindo o cheiro do pão saindo do forno. Neto do Araribóia, hoje o militar do Exército é cliente assíduo. “Venho visitar minha mãe e aproveito para comprar pão”.
FONTE: GENTE EM PAUTA